Há mais de 20 anos que a atriz acompanha de perto o drama dos afegãos — e a recente manobra é só mais uma de muitas campanhas.
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Quando agarrou o papel de Lara Croft, a carreira de Angelina Jolie explodiu. Era, à época, conhecida pela sua beleza, pela sua relação atribulada com o pai, John Voight, e pelo seu passado ligado a excessos, entre álcool e drogas. “Tomb Raider” viria a mudar muita coisa.
O filme de 2001 levou-a até à selvas do Cambodja onde viveu uma experiência transformadora. Regressada aos Estados Unidos, onde sempre viveu uma vida de privilégio, embarcou na habitual digressão de promoção daquele que viria a ser o seu grande blockbuster. Mas a atriz, então com 26 anos, não se queria limitar a responder às habituais questões de circunstância.
“O Cambodja é um sítio lindíssimo”, atira quando lhe perguntam sobre a experiência nas filmagens. “Não quero falar de coisas muito pesadas, mas lá descobri o que se passa no mundo. Os meus olhos começaram a abrir-se”, revelou em entrevista à “NYRock”. A turbulenta e violenta história do país, que se debatia ainda com a probreza, a falta de condições de saúde e o perigo das minas, deixou uma impressão forte na atriz.
Assim que regressou a casa, o primeiro telefonema que fez foi para a Agência das Nações Unidas para os Refugiados. Sete meses depois, a atriz de 26 anos era nomeada como Embaixadora da Boa Vontade da agência. Mas antes de receber o título, voltou a fazer as malas e embarcou rumo a destinos pouco paradisíacos. Deixou para trás os luxos e aventurou-se pelos campos de refugiados no Cambodja, Serra Leoa, Tanzânia e Paquistão. Não só queria ajudar como recusou usar qualquer dinheiro da Agência — todos os custos, seus e do staff, foram pagos por si.
Foi no Paquistão que encontrou uma das situações mais complicadas, sobretudo entre os refugiados afegãos que, à época, tentavam escapar ao conflito provocado pela invasão norte-americana que combatia o regime talibã. Perante o apelo da Agência, Jolie cumpriu e entregou mais de um milhão de euros ao fundo de apoio aos refugiados afegãos. Vinte anos depois, Jolie vira-se novamente para o Afeganistão e faz notícia em todo o mundo.
Primeiro, a situação inédita: a atriz fez a sua primeira publicação no Instagram no sábado, 21 de agosto. Não era uma selfie, um retrato de família, uma promoção do seu novo filme; era, sim, a carta que recebeu de uma jovem afegã. Em dois dias acumulou mais de três milhões de likes e mais de sete milhões de seguidores.
“Neste momento, o povo afegão está a perder a sua capacidade se expressar livremente e de comunicar nas redes sociais. Por isso juntei-me ao Instagram para partilhar as suas histórias e as vozes do outro lado do globo que estão a lutar pelos seus mais básicos direitos humanos”, escreveu a atriz de 46 anos.
A jovem afegã, cujo nome foi ocultado por medo de represálias, não poupou críticas. “É doentio ver novamente tantos afegãos a fugirem das suas casas por causa do medo e da incerteza que tomou conta do país (…) Depois de tanto tempo e dinheiro gasto, de tanto sangue derramado e vidas perdidas, chegarmos a este ponto, é um falhanço impossível de compreender.”
Esta é apenas mais uma iniciativa de Jolie que, desde a primeira viagem em 2001, se tornou numa das estrelas de Hollywood mais dedicadas aos projetos humanitários. Chegou mesmo a lançar, em 2003, um livro que relatava as experiências na primeira pessoa das viagens feitas a países em desenvolvimento durante o primeiro ano no cargo de embaixadora das Nações Unidas.
Ao longo das últimas duas décadas, o drama afegão tornou-se numa das causas mais importantes para a atriz. Em 2008, sete anos depois do primeiro encontro com refugiados no Paquistão — onde voltou em 2005 para nova visita —, decidiu finalmente voar até Cabul pela primeira vez.
“Mais de cinco milhões de afegãos regressaram ao país nos seis anos que se seguiram à queda dos talibã”, explicava em 2008, antes da viagem. “Quero ver com os meus próprios olhos como é que eles estão.”
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Durante uma visita a refugiados afegãos
Estima-se que Jolie tenha já feito mais de 60 viagens a locais de conflito, onde se vive sob condições dramáticas, num percurso que a levou a mais de 30 países. E, pela terceira vez na sua carreira como embaixadora, o drama afegão volta a ser um obstáculo.
“Por detrás dos rótulos — chamam-lhes refugiados, pessoas deslocadas, candidatos a asilo — estão pessoas com as mesmas esperanças, medos, arrependimentos que qualquer um de nós. As suas vidas costumam ter histórias profundamente trágicas mas também encorajadoras”, explicou em 2008. “Sobreviver, como sobreviveram durante 30 anos, muitas destas famílias afegãs, é um autêntico testemunho à resiliência do espírito humano. E isso sente-se através da sua generosidade, humor e determinação silenciosa em dar aos seus filhos um futuro melhor.”
Numa altura em que era uma das atrizes mais bem pagas de Hollywood, trocava as entrevistas de carreira por debates sobre as suas viagens. De regresso dessa visita a Cabul, trouxe centenas de fotos e vídeos. Num deles, um afegão contava a sua história entre lágrimas.
“É tão raro ver um homem adulto perder o controlo e chorar. Quando acontece, percebes o quão devastadora é a situação. Ele estava desesperado por não poder fazer nada pela sua família”, comentou Jolie.
Apesar do estatuto de celebridade, qualquer uma destas viagens comporta riscos que a atriz aceita correr. São, afinal, zonas de conflito ou que ainda carregam pesadas marcas de guerra. E Jolie não diz que não.
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Um dos momentos mais dramáticos da visita a Cabul
A sangrenta guerra civil do Cambodja deixou uma herança negra à população que, em 2001, fez despertar em Jolie a faceta de humanitária. O país do sudeste asiático tem sido também um dos seus focos.
Um ano depois das gravações de “Tomb Raider”, a atriz voltou ao Cambodja, onde enfrentou, lado a lado com a população, os perigos das minas. “Caminhei por certas zonas onde me tinham dito que nunca nada lá tinha explodido — e que portanto não eram consideradas zonas de alto-risco — mas tu e todos os que vão contigo tentam manter-se no visível trilho que toda a gente usa. Não te afastas dele”, contou.
“E quando a meio da noite tens que ir à casa de banho nos arbustos e deixas de saber bem qual é o caminho… É uma loucura pensar que realmente não sabes [onde estão as minas] e que há pessoas que vivem a vida assim.”
O Cambodja acabaria por conquistar um lugar no coração da atriz. Foi lá que, numa das suas visitas em 2002, decidiu ajudar no que lhe fosse possível — e, com o acordo do então marido Billy Bob Thornton, visitou um orfanato com o objetivo de adotar uma das muitas crianças vítimas da pobreza e da guerra.
“Em 2001 estava numa escola em Samlout a brincar no chão com um miúdo pequeno e tive uma visão clara como a luz do dia: ‘o meu filho está aqui’”, recordou em 2020 à “Vogue”. Regressou mais tarde a um orfanato na província de Battambang. Tinha prometido que visitaria apenas um orfanato mas, à medida que o percorria, o cenário complicou-se.
“Não sentia nenhuma ligação especial com nenhum dos órfãos”, revelou. “Foi então que disseram que havia mais um bebé.” Deitado numa pequena caixa pendurada no teto estava um pequeno bebé de meses. “Chorei, chorei muito”, contou à “Vanity Fair”.
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Com Maddox ainda bebé
O processo de adoção foi atribulado. Suspenso ao fim de um mês por causa da decisão do governo norte-americano de banir adoções de crianças do Cambodja, ficou ainda manchado pela detenção do intermediário do processo, condenado por lavagem de dinheiro. Apesar de tudo, a adoção preencheu os requisitos legais e Maddox tornou-se mesmo no primeiro filho de Jolie — que, depois da separação de Thornton, o criou sozinha.
Além de Maddox, Jolie adotou outros órfãos em países sub-desenvolvidos. Pax veio do Vietname e Zahara da Etiópia. Tem ainda mais três filhos biológicos, Shiloh, Vivienne e Knox.
Ao fim de uma década como embaixadora da boa vontade, a atriz receberia outra honra, desta vez entregue por um português. Em 2012 foi promovida a Enviada Especial do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, entidade dirigida por António Guterres. Jolie ficaria, então, encarregue de dar a sua ajuda nas mais graves crises de refugiados.
Foi então na companhia do antigo primeiro-ministro português que Jolie fez a sua primeira campanha como enviada especial, ao Equador, sendo que depois acompanhou Guterres numa viagem de uma semana para apoiar a situação dos refugiados do conflito sírio, espalhados pela Jordânia, Líbano, Turquia e Iraque.
A mais recente crise afegã toca em dois assuntos queridos a Jolie: o drama dos refugiados no Afeganistão e os direitos das mulheres, sobretudo quando colocados em causa durante conflitos armados; ela que, em 2014, encabeçou um protocolo que haveria de ser adotado por 151 países.
Aos 46 anos e ainda com uma fervilhante carreira como atriz, tem se virado cada vez mais para a realização, onde também é visível a sua preocupação com os conflitos e dramas humanitários.
Aconteceu em “Na Terra de Sangue e Mel”, escrito por Jolie, que conta uma história de amor que tem lugar entre os horrores da guerra na Bósnia. E repetiu-se com “Primeiro, Mataram o Meu Pai”, de 2017, que relata a experiência real de Loung Ung, uma jovem de sete anos que, em plena guerra no Cambodja, é treinada para ser uma criança-soldado.
Há, contudo, sempre tempo para mais uma viagem humanitária, mesmo enquanto produz e cria filmes, educa seis filhos e lida com um turbulento processo de divórcio. “Nada teria significado se não vivesse uma vida onde fosse capaz de ajudar os outros”, nota.