Simão tem leucemia e só precisa de um dador para viver — e cumprir o sonho de ser músico
Tem 22 anos, ri-se da doença e tem sempre uma piada na manga. De guitarra na mão, quer convencer os portugueses a chegarem-se à frente.
Simão surge sozinho, só ele e a sua guitarra, num banco de jardim, enquanto solta os primeiros acordes. O tema que lhe sai do coração chama-se “Até ao Fim”, a canção que escreveu inspirado pela história em comum com a namorada e com os tempos difíceis que, agora juntos, procuram ultrapassar.
A canção — a sua primeira composição, prestes a ser lançada oficialmente nas redes — é também o mote da campanha Instituto Português do Sangue e da Transplantação, numa tentativa de angariar doadores de sangue e de medula óssea que, neste caso, podem literalmente ajudar a salvar uma vida, a de Simão e a de muitos outros.
Há cerca de seis meses, a vida do jovem de 22 anos mudou. Tudo começou com algo que julgava ser uma gastroenterite, mas que se complicou progressivamente. Ao fim de duas semanas tinha perdido dez quilos e foi então que recorreu aos hospitais.
“Passou-me tudo pela cabeça, inclusive outros tipos de cancro”, recorda. Mas quando se sentou para falar com a médica, mesmo com todos esses cenários na cabeça, confessa que não esperava o que se seguiria. “Percebi logo que não era muito bom porque a médica fez uma cara muito triste, provavelmente ainda mais triste do que a minha. Tinha caído ali de pára-quedas, foi a primeira vez que estive internado num hospital.”
Em outubro, recebeu o diagnóstico definitivo. Sofria de uma leucemia linfoblástica aguda tipo B “e mais umas coisinhas”. São “essas coisinhas” que tornam o seu caso mais difícil de solucionar — e que o tornam ainda mais dependente da boa-vontade dos dadores.
Esteve um mês internado no Instituto Português de Oncologia de Lisboa até que saber tudo o que tinha para saber. Há pouco de melodramático no tom de voz do jovem de Belas, sempre com um gracejo ou uma piada preparada. Faz parte da forma como decidiu encarar a doença, mas não só. Confessa-se um “otimista por natureza”.
“Perguntei quais eram as minhas probabilidades e elas andavam ali perto do IVA cobrado em Portugal [23 por cento] o que não é muito bom. Por um lado, o IVA podia ser um bocadinho mais baixo e as minhas probabilidades um bocadinho maiores [risos].”
Sucederam-se os tratamentos de quimioterapia. Vai relatando os altos e baixos no Instagram, numa espécie de diário onde despeja os dias bons e os dias maus. “Houve um dia que tive uma septicemia, estive perto de uma paragem cardíaca e no dia seguinte escrevi como se tivesse sido uma aventura incrível. Porque estava lá, porque estava impecável, porque estava na galhofa com os enfermeiros”, nota, antes de deixar uma nota a todos os que o têm ajudado. “Quero deixar um grande, grande, grande abraço de parabéns a todos os enfermeiros, auxiliares e médicos porque têm sido incansáveis.”
Nos internamentos mais longos, a guitarra acompanha-o sempre. É um rapaz das artes. Começou a sê-lo por influência familiar. A mãe é professora de música, o pai toca guitarra e “há mais uns quantos músicos na família”.
Começou por imitar a “posição dos dedos” do progenitor enquanto tocava e assim que perceberam o seu interesse, ajudaram-no a enveredar pelos caminhos da música. Guitarrista autodidata, teve formação mais formal em piano, frequentou o Instituto Gregoriano de Lisboa, chegou até a tocar violino.
A guitarra e a música eram a sua grande paixão, mas o pragmatismo falou mais alto. “Desde pequeno que sabia que querias artes. A música era o que queria, mas por cá é difícil. Cheguei a pensar no design, pintura, escultura…” Acabou por se licenciar em Arte Multimédia e, no dia do diagnóstico, estava a quatro dias apenas de começar o mestrado em Design e Comunicação — a primeira grande decisão que teve que tomar.
“Pensei se iria ou não às aulas, mas decidi fazer uma pausa. Se era para fazer, era para fazer a sério, e eu sabia que com a leucemia ia ser complicado”, conta. O que parecia um entrava tornou-se, na verdade, num momento de clareza.
“Atirei a música para segundo plano por causa da estabilidade financeira. Tinha que ser top para poder fazer vida — e quero ser top —, mas as minhas prioridades mudaram. A leucemia fez-me abrir os olhos”, confessa. “Uma coisa que esta doença me está a ensinar é que tenho pouco tempo — não terá de ser necessariamente assim, porque quero ficar bem e vou ficar bem —, mas todos os dias são um contrarrelógio. O quero é fazer música porque é ela que me faz feliz. E vou ser o melhor dos melhores. Hoje, a minha vida passa mais pela música do que passava há uns tempos.”
O novo empenho deu origem ao primeiro tema original que escreveu, que fala sobre a relação de mais de dois anos com a namorada e do imprevisto que significou o surgimento da doença. A composição foi outro talento que se revelou nos últimos meses.
“Não sabia que sabia compor. Bem, talvez não saiba, talvez haja quem não goste. No entanto, tenho gostado bastante do que faço, tem-me dado gozo compor e cantar originais. Já tenho mais algumas coisas escritas”, conta. E os últimos meses não têm trazido apenas a incerteza associada à leucemia. Trouxeram também excelentes surpresas.
A 26 de janeiro, subiu ao palco ao lado de Tiago Nogueira, dos Quatro e Meia, e esteve à conversa com António Zambujo, com quem trocou impressões sobre composição. O encontro começou a desenhar-se ainda antes da doença, Simão andava à procura de uma guitarra de sonho, mas queria experimentá-la antes de a encomendar do estrangeiro.
“Procurei em todo o lado e encontrei o Tiago, que tinha essa mesma guitarra. Ele falou comigo pelo Instagram, combinámos encontrar-nos e a partir daí ficamos em contacto”, recorda.

O tempo passou e, com o primeiro tema nas mãos, Simão puxou da ambição e pensou em concorrer ao Festival da Canção. “Sabia que o Tiago já tinha concorrido como submissão livre e perguntei-lhe como é que tinha feito. Ele pediu para ouvir o tema, gosto e convidou-me para o apresentar nesse concerto a título pessoas.”
Recorda a noite do espetáculo com “incrível”. “Já tinha cantado para mais pessoas em público, mas estar num concerto com aquele nível de profissionalismo, é todo um outro nível. E fez-me estar mais perto daquele que é o meu sonho.”
O otimismo, esse mantém-se sempre forte. Simão confessa até ter uma teoria sobre a leucemia. “Depois do diagnóstico, disse à minha namorada que achava que a leucemia era 90 por cento cabeça e 10 por cento corpo e nestas alturas tenho a certeza absoluta disso“, diz sobre a luta. “Há dias em que temos dores infernais, em que têm que me espetar agulhas gigantes nas costas, há dias em que só queremos vomitar por causa dos tratamentos. Temos que permitir o nosso corpo estar mal nus dias, mas não podemos viver a vida sempre em baixo.”
Embora confesse haver “dias bons e outros menos bons”, diz que o foco tem que estar nos primeiros. “Tento pegar na minha vida e olhar para os raios de luz, para a cor que vai aparecendo, mesmo nos dias menos bons.”
O cenário podia, contudo, ser melhor. O corpo está a responder bem aos tratamentos, mas este tipo de leucemia requer uma doação de medula compatível. Já surgiram vários candidatos na base de dados, “perto de uma dezena”, mas nenhum avançou. Uns por questões que os desclassificaram, outros porque simplesmente não quiseram avançar para a doação.
“Arranjar um dador é fundamental para mim porque é o que me pode garantir uma vida estável, um regresso à normalidade, sem recaídas ou reincidências“, conta. “Claro que existe sempre um risco, mas a doação faz com que ele seja muito menor.”
“O apelo que faço é que se inscrevam, mas não só. Se um dia forem chamados — e podem nunca ser —, não recuem, porque se disserem que sim, podem salvar uma vida. Podem fazer com que a pessoa possa tirar a máscara. Com que volte a comer fiambre [risos]”, graceja. “Nós temos a vida parada por causa disto. Vamos vivendo, mas pronto, enquanto andar assim, em vez de fiambre, só como queijo [gargalhada].”